Após 5 meses de missão em Manjacaze, aqui estamos para vos dar palavras do que foi este tempo transformador de tantas coisas.
O projecto a que estivemos inteiramente dedicados foi a Mesa de São Nicolau. A Mesa funciona em Macasselane, uma aldeia a 10 Km da vila de Manjacaze. Desde 2007, o seu principal objetivo é garantir uma refeição para as crianças mais carenciadas que aqui frequentam a Escola Primária (1ª à 7ª classe).

Atualmente, a Mesa de São Nicolau serve uma refeição diária a mais de 200 crianças, o que garante a sua nutrição básica, dando-lhes a possibilidade de frequentarem a escola. Nos últimos anos, o projeto tem tentado ir mais além, e colmatar o insucesso escolar bem como a baixa taxa de alfabetização, pelo que oferece também apoio ao estudo. No tempo livre as crianças ajudam em diversas tarefas. Depois do trabalho existe um espaço informal onde convivem e brincam.


Macasselane é uma aldeia onde ainda não chegou a energia elétrica nem a água canalizada. Existe um centro de saúde, um jardim infantil e a escola primária. Num primeiro momento, a falta de tanto na Mesa causou-nos alguma dormência, a perplexidade de quem procura resposta para a pergunta: “Por onde começar?”. A pobreza dura e evidente das crianças, e a sua humildade e alegria ainda mais evidentes, desconcertaram-nos totalmente.

O difícil acesso a água potável, a inexistência de espaços definidos e decorados para crianças, a sujidade que é o processo de lavagem da loiça, a escassez de recursos humanos e materiais e até do tempo adequado para um apoio ao estudo eficiente, compunham um cenário despido que nos parecia impossível ser o de um lugar para crianças felizes. Os miúdos eram muitos. Iam chegando, sujos, com a roupa rota, alguns descalços e com os sacos de arroz à tiracolo a fazer de mochila. No entanto, gratos, obedientes, tímidos mas curiosos, esfomeados mas disponíveis para aprender, de olhos abertos e na escuta de novidades, lá estavam eles, os nossos “Nicolaus”.
Começámos por ensinar a ler e escrever, dar apoio ao estudo, mas… onde estava o quadro de giz para poder explicar um exercício? A mesa e a cadeira para estudar? O lápis para escrever?

Inicialmente também fazíamos atividades e dinâmicas educativas para desenvolver a liderança, organização e o trabalho em equipa, mas… seria esta a prioridade?
A dada altura os miúdos tinham que se ausentar para caminhar até ao furo da comunidade e trazer água potável, ou pilar amendoim e arranjar repolho para o almoço, ou cortar lenha, ou, ou, ou…

Chegámos à dura conclusão de que não podíamos continuar com aquele tipo de trabalho. Pouco a pouco, entendemos que por muito que nos desse prazer e fosse até útil no imediato dar apoio à educação, iria tornar-se efémero e pouco eficiente. Percebemos que não podíamos começar a “construir a casa pelo telhado”.
Não havendo para tudo um plano prévio definido, ou estando os planos imaginados inadequados ao que a realidade obvia, a missão vai-se muitas vezes descobrindo. É na escuta do próximo que se desvenda aquilo que ele, o próximo, e nós com ele, realmente poderemos precisar para uma vida melhor. Entre o planeamento e o improviso, tudo se vai e foi moldando para o encontro do melhor serviço.
Por outras palavras, enquanto a água potável, a luz elétrica, a alimentação, as mesas e cadeiras, a tinta das paredes, a identidade de um espaço para crianças e a higiene básica estão longe de estar perto, quem consegue, por muito que queira, progredir de forma consistente nos seus estudos? Para já, caminhar para o poço comunitário, ter sono de fome, coçar a tinha, procurar caneta e chinelo, brincar, cantar, dançar, pilar amendoim, era necessário e até natural. Tudo isto se tornou claro como a água que não havia na Mesa.
Então qual era a prioridade? Fazer daquele espaço um lugar para crianças. Criar as estruturas necessárias que suprissem as necessidades básicas. Encontrar forma de dar sustentabilidade à Mesa. E depois sim, num futuro melhor, pensar em tudo o resto. Aprendemos com isto a aceitar que a missão não é aquilo que esperamos dela, mas aquilo que ela espera de nós.
Nos olhos destas crianças, a Mesa espelha-se como um lugar de Sonhos… e que Sonhos? Era necessário sonhar alto, planear bem e agir rápido.


6 Frentes de Ação revelaram-se prioritárias:
- Angariar fundos (através de uma campanha de crowdfunding e doações de Portugal e Itália)
- Criar e melhorar infra-estruturas, espaços de apoio, equipamentos e material (furo de água potável e canalização; horta pedagógica; requalificação dos espaços para refeição, estudo e arrumação, cozinha e WC; distribuição de kits de material escolar;)
- Capacitar recursos humanos adultos
- Apoiar a organização e funcionamento (implementação de um horário oficial de atividades incluindo tempo de estudo, banhos, tarefas de apoio ao funcionamento da Mesa e atividades de tempos livres; seleção e responsabilização de líderes; criação de cartões de utilizador;)
- Enriquecer a formação e educação das crianças (auxiliar no apoio ao estudo; formações especializadas na área da saúde;)
- Realizar diagnóstico para combate a situações de pobreza extrema (diagnóstico da população atual a usufruir da mesa)


Após traçarmos um plano exaustivo, foi altura de pôr mãos à obra. Com a ajuda do Grupo Missão Mundo, Irmãs Concepcionistas, Mamãs que trabalham na Mesa, Tindotas (líderes) e comunidade local, fizemos por compor a Mesa.







Em sonhar, aprender, procurar apoio financeiro, comprar e carregar materiais, pintar, mobilar, martelar, contratar serviços qualificados, lavrar a terra e delimitar espaços, trilhou-se uma missão de sonhadores, empreiteiros e machambeiros. O resultado é que fizemos aqui coisas que nunca pensámos fazer. Aprendem as mãos e o coração.







Chegámos ao fim do nosso tempo em Moçambique. Podíamos criar uma lista infindável de aprendizagens que levamos daqui. Descobrimos que a pobreza fala muito mais sobre a dignidade do ser humano do que propriamente da existência de bens materiais. Aprendemos que é possível viver os dias devagar e intensamente. Mostraram-nos que a alegria é uma pré-disposição gratuita e necessária. Apresentaram-nos Deus como uma espiritualidade garantida, como uma certeza que vem antes de qualquer dúvida que tenhamos.
A missão terminou. E agora?
Saímos de Moçambique com o sentimento estranho de que somos novamente enviados. De casa para o Mundo. Porque esta foi, durante 6 meses, verdadeiramente a nossa casa e porque somos verdadeiramente reenviados numa interminável missão humanitária.
Em Moçambique, sentimos que fizemos a diferença, que fizemos muito. Por outro lado, esse muito é tão pouco em relação ao que ainda há por fazer. Depois da água potável, das mesas, cadeiras e material escolar vem tudo o resto, como a Educação. A maioria dos meninos da Mesa continua sem saber ler ou escrever…


A missão terminou e continua. Onde houver possibilidade de servir a felicidade de alguém haverá sempre missão. Acreditamos que essa é a missão universal que se pede a todos nós. Que procuremos praticar o bem neste preciso momento àquele que está à imediatamente ao nosso lado. Sem desculpas, sem egos, sem demoras, sem preconceitos, que saibamos ser muito humanos. Somos sempre reenviados para fazer o bem inesperado na esperada indiferença. E é aí que somos, de facto, quando somos com os outros.
